ARTEMIS

Isso aconteceu há alguns anos, quando todos éramos estudantes de graduação, de famílias pobres, ou com um pouco mais de recursos, mas tínhamos nossos próprios ganhos, fosse com empregos formais, ou com “bicos” freqüentes e importantes dentro dos nossos recursos restritos.
Saímos em um grupo de 3 ou 4 casais em suas motocicletas, nos achando o máximo saindo para beber em uma quinta-feira, em um período de provas, com poucas notas de baixo valor na carteira.
Na verdade, todos cdf’s (continuo a ser, um sintoma, é que até mesmo dessa gíria ainda não consegui a atualização) uns mais, outros menos estudiosos, mas que não tinham nada de farristas bebedores, que era o personagem assumido pelo grupo naquele dia. Um par já era até mesmo casado!
Na verdade, sentamos em um barzinho, dividindo uma imensa porção de batatas fritas (e mais nada) e bebendo algumas cervejas, pois o dinheiro não daria pra muito mais que isso, de qualquer jeito.
A disputa pela palavra era acirrada, entre piadas de difícil interpretação e algumas histórias de viagem ou infância. Mas, o assunto principal era a faculdade, e a troca de opiniões principalmente quanto à assuntos da área científica, pois éramos a maioria. Um aspirante a físico, um a químico, outro a....biólogo ou algo assim, engenheiro e talvez algum advogado. Não sei ao certo.
Risadas e falas altas e entusiasmadas, pois uma coisa tínhamos em comum, um ou outro podia até não admitir, mais amávamos sermos estudantes. E até mesmo estudar (claro que nem sempre).
Enquanto um falava sobre os campos elétricos e o outro levava o assunto até os super-computadores, alguém comentava do acidente de carro com alguns estudantes conhecidos de conhecidos na semana anterior, um outro par ou trio formava um subgrupo e falava de ciclos naturais e metabolismos vegetais, um outro, tinha capacidade para juntar tudo isso e lembrar de uma piada que reunisse os assuntos, e claro, uma piada conseguia reunir novamente o grupo em um só.
As horas foram passando, poucas cervejas foram tomadas. As bocas estavam ocupadas, conversando sobre tudo, e mais um pouco que pudesse haver. O dinheiro chegando ao fim nas carteiras servia para marcar o ritmo de uma conversa mais prazerosa, com ingestão de líquido apenas o suficiente para manter nossa vaga no bar e o papo animado e hidratado.
Meia-noite, começou a tocar uma banda e o bar agora estava muito mais cheio do que há 3 horas, quando chegamos (ou será que foram 4?).
Nossa conversa já não dava conta de superar os outros sons. E quando alguém contava uma piada, os outros tinham de ficar perguntando: - Que cê disse agora? Macaco?
E explicar piada, perde toda graça.
O cara casado, sentado do lado da esposa, também estudante, e de seu outro lado, o amigo físico, era o mais animado contador de piadas, e sugeriu enfático: - Assim não dá pessoal! Vamos pra outro lugar, aqui a gente não se escuta mais!
Todos concordaram, pois estava realmente muito divertido, aquela quebra de rotina para aquela gente jovem e certinha, já cheia de obrigações e sem muito colo e quase nenhum apoio financeiro de pai e mãe.
Foi pedida a conta, que veio como uma comprida fita de papel estreito, enumerando nossas 2 ou 3 porções de batatas fritas e cervejas, pedidas uma-a-uma.
O cara casado, certamente, recebeu a conta, pois era o de jeitão mais animado e aparentava ser o líder do grupo. Conferiu a conta linha a linha, e quando chegou ao último item listado, quase teve um acesso, indignado.
Apontava para a conta e dizia: - O que é isso? Eu não comi isso daqui!
Olhava para a esposa e o amigo, um de cada lado e sacudia o papel, tentando chamar a atenção do garçom e dizendo: - Nos cobraram alguma coisa que outra mesa pediu, a conta ta o dobro mais cara. Ninguém aqui pediu outra coisa além das batatas fritas e cerveja, não é?
A esposa, em vão, pedia e tentava ler a conta, mas ele, agitado só tentava sinalizar ao garçom repetindo: -Eu não comi isso, ninguém daqui comeu isso. Não vou pagar por uma coisa que eu não comi!
O garçom chegou e ele falou ao garçom: - Eu não comi isso daqui. Nem sei o que é. Tem um nome estrangeiro. Pra que eu ia pedir uma coisa com esse nome “couverte”... não sei o que. Ninguém aqui sabe o que é isso, e ninguém comeu isso!
Ele tinha finalmente parado de sacudir a tal nota, e a esposa, conseguido ler e confirmar suas suspeitas sobre o que constava na nota tentava fazê-lo ouvi-la: -Por favor amor, eu sei o que é. Me ouve, não é de comer. A gente tem de pagar.
E ele, não querendo interromper seu protesto, dizia: - Espera, tô reclamando da conta. A gente não comeu isso que tá escrito aí. Não tem que pagar nada!
O amigo, do outro lado, também já apoiava que ele ouvisse a esposa, e lhe dizia: - Calma aí, cara, ouve o que ela tá dizendo.
Mas ele não queria perder aquela batalha, e nem o pouco dinheiro dos amigos e insistia com o garçom, constrangido, que também tentava explicar, mas não conseguia: - Eu não comi isso daqui! Não vou pagar!
A esposa, vencida, desistiu de ser discreta e tentar poupar o orgulho de seu par, e resolveu a questão dando um belo puxão no braço do teimoso e dizendo bem alto, para que ele ouvisse a voz dela além da própria: - Você não poderia comer isso mesmo! É o Couvert Artístico!
E ele ainda com cara de dúvida: - É a música! - Ela completou.
Pagamos, saímos, e fomos para nossas casas, pois agora não tínhamos mais nem para um ônibus. Antes disso, ouvi ele resmungando baixinho pra ela:
- Como eu ia saber? Não fico fazendo aulinhas de Francês, que não sei pra que serve na sua área. Aquela música só prestou pra acabar com a nossa conversa. E eu ainda tive de pagar por ela!
E só pra completar, em voz alta, para provar a todos que não tinha perdido o bom humor:
- Mas eu não comi mesmo o tal Couvert Artístico!
Todos gargalhamos aliviados, pois era o que queríamos desesperadamente fazer, mas não sabíamos muito bem se ele estava realmente zangado ou só sendo teimoso.
Voltamos para casa com os bolsos muito lisos, mas levando uma história verídica nova para contar nas próximas raras reuniões de pouca grana, pouca bebida, pouca farra mas muita diversão.
0 Responses

Postar um comentário

Pesquisa personalizada